Curitiba, 17 de novembro de 2018 – Nesta última terça feira, dia 16 de julho de 2019, o Exmo. Presidente da República Federativa do Brasil, Sr. Jair Messias Bolsonaro, publicou em sua conta oficial de uma rede social a informação de que o Ministério da Educação interveio junto à Universidade Federal da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab para suspender o Edital nº 29/2019, de 9 de julho de 2019, que tornou público o processo seletivo específico para candidatas(os) transgêneras(os) e intersexuais nos cursos de graduação presencial ofertados pelos Campi Ceará e Bahia para ingresso no semestre 2019.2, com início previsto em 30 de setembro de 2019.
Ainda na data de ontem, tomamos conhecimento do Parecer n. 081/2019/GAB/PFUNILAB/PGF/AGU, assinado no dia 16/07/2019, às 10:41, pelo Sr. Felipe Grangeiro de Carvalho, Procurador-Chefe PF/Unilab, onde alega ofensa aos Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade, opinando pela “1. pela desaprovação jurídica da minuta do Edital nº 29/2019; 2. pela imediata suspensão do Edital nº 29/2019 e consequente paralisação do certame; 3. pela anulação do Edital nº 29/2019, amparado no poder de autotutela da Administração.”
As posições exaradas pelo atual mandatário da nação brasileira e pelo o representante máximo da procuradoria Federal da Unilab violam diretamente diversos dispositivos constitucionais. Ao enfrentar o tema, o Supremo Tribunal Federal já consolidou sua posição unânime, a saber:
- A desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia;
- Não há violação aos princípios do concurso público e da eficiência.
- A medida observa o princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão.
Neste contexto, antes de analisar questões técnicas, importante se faz a retomada de questões factuais acerca do referido Edital impugnado.
Isto por que, em concretude ao princípio da autonomia universitária prevista no art. 206 da Constituição Federal, bem como em interpretação dos fundamentos descritos nas três alíneas acima, no início do mês de julho deste ano de 2019, a comunidade acadêmica aprovou em seus órgãos internos e a Unilab fez publicar, através do Prof. Dr. Edson Lima Barboza, Pró-reitor de Graduação, pelos menos 4 Editais distintos, visando o preenchimento de vagas ociosas nos cursos de graduação da Unilab. Senão, vejamos:
a) Edital nº 25/2019, de 02 de julho de 2019, processo seletivo específico para quilombolas e indígenas, onde foram ofertadas 205 (duzentas e cinco) vagas.
b) Edital nº 26/2019, de 09 de julho de 2019, processo seletivo para provimento de vagas ociosas nos cursos de graduação para professores da educação básica – Unilab/Ceará e Bahia, onde foram ofertadas 78 (setenta e oito) vagas;
c) Edital nº 27/2019, de 09 de julho de 2019, processo seletivo para admissão de graduados e transferência de outras instituições de ensino superior – IES nos cursos presenciais de graduação – ingresso 2019.2, onde foram ofertadas 249 (duzentas e quarenta e nove) vagas.
d) Edital nº 29/2019, de 09 de julho de 2019 processo seletivo específico para pessoas transgêneros e intersexuais, onde foram ofertadas 120 (cento e vinte) vagas.
Pois bem, no caso em questão, inclusive para esclarecer a decisão da comunidade acadêmica da Unilab, o Pró-reitor de Graduação fez publicar no sitio eletrônico da instituição, o Aditivo II, no dia 12/07/2019, onde fez constar nesta errata que “as vagas ofertadas para o processo seletivo específico para candidatas(os) transgêneras(os) e intersexuais são para o provimento de 120 (cento e vinte) vagas ociosas nos cursos presenciais oferecidos pela Unilab para ingresso no período letivo 2019.2
O fato é que todo edital traz regras. E todas as regras impostas no edital geram exclusão de algum/a candidata/o. Como se vê nos Editais publicados pela Unilab, foram ao menos, uma primeira regra geral, três subregras e mais aquelas exigidas pelo procedimento formal de inscrição do processo seletivo.
A primeira regra geral, portanto, foi oriunda da verificação de vagas ociosas. Se trata de candidatas/os que concorreram pelo sistema de universalidade de vagas, e em virtude do abandono escolar ou não preenchimento de todas as vagas, acabaram por deixar ociosa centenas de vagas no sistema de educação regular de instituição federal, notadamente da Unilab.
As três subregras, neste sentido, estabeleceram uma política de acesso ao ensino público para quilombolas e indígenas, para 205 vagas; a tradicional e jamais questionada reserva de vagas para admissão de graduados e transferência de outras instituições de ensino superior – IES, para 249 vagas; e a política de acesso ao ensino público para pessoas transgêneros e intersexuais, com a disponibilização de apenas 120 vagas.
Com estas considerações fáticas, recorremos a algumas decisões já adotadas pelo colegiado do Supremo Tribunal Federal, para demonstrar, cabalmente, a inadequação do posicionamento adotado pela União de interferência direta a decisão de Universidade Pública.
Visto que as balizas sobre o direito à igualdade material precisam ser reafirmadas, que o princípio da proporcionalidade não pode ser observado sob um prisma único, e diante do direito à autodeterminação conferido pelo STF, associado ao direito à não discriminação, nos colocamos frontalmente opostos a posição oficial do Governo Federal.
Neste contexto, importante ressaltar a razão de políticas afirmativas, como está descrita no Edital em discussão. Afinal:
“não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares” (ADPF 186, Relatoria Min. Ricardo Lewandowski, julgado por unanimidade) (destaques nossos)
Não diferente é a posição do Min. Roberto Barroso, declarada por unanimidade do plenário do STF, nos autos da ADC 41. In verbis:
“a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.
Neste ponto, cabe-nos destacar que o STF em recente decisão nos autos da ADO 26 e MI 4.733, assentou, na tese proposta pelo Min. Decano Celso de Mello, que:
“conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito”. (destaques no original)
Estamos, assim, diante de um claro atentado à dignidade das pessoas trans. A política afirmativa definida pelo Colegiado da Unilab sofre ataques injustificados exclusivamente em face de um dos recortes sociais que mais é vulnerabilizado: as travestis, transexuais e intersexuais.
E em um tempo de francos avanços no judiciário, onde restou reconhecido que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero” e que a “identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la” (ADO 4.275, Relatoria Min. Edson Fachin), causa-nos espanto a decisão de suspensão do Edital da Unilab que tornou público o processo seletivo específico destinado a candidatas(os) transgêneras(os) e intersexuais para vagas ociosas nos.
A medida, a bem da verdade, observa o princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão. A existência de uma política afirmativa para o acesso de trans e intersexo à educação superior não torna a oferta de vagas nos quadros de universidade pública desnecessária ou desproporcional em sentido estrito. Vejamos o cenário de modo razoável: (I) as vagas destinadas para o cursos de graduação presencial ofertados pelos Campi Ceará e Bahia da Unilab são para ingresso no semestre 2019.2 são aquelas ociosas, já desperdiçadas pela concorrência universal; (II) mesmo com as políticas afirmativas, as pessoas possivelmente beneficiárias da ação podem não conseguir acessar, porque muitas das pessoas trans não conseguem terminar seus estudos do ensino médio; (III) com a destinação de 120 vagas para pessoas trans e intersexo, também foram destinadas 249 vagas para admissão de graduados e transferência de outras instituições de ensino superior e foram ofertadas 205 vagas para quilombolas e indígenas, onde resta demonstrado que há uma clara proporcionalidade de vagas entre outras duas categorias e que estas não foram atacadas pelo Governo Federal.
Neste sentido, nos solidarizamos com toda a comunidade acadêmica da Unilab, em tempo que reafirmamos nossa posição totalmente contrária as manifestações do Presidente da República, nos colocando ao lado do CONSUNI da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, apoiando integralmente a decisão de abertura de um Edital para processo seletivo de acesso ao ensino público federal para pessoas trans e intersexo, por está dentro da Legalidade e abrigado pela nossa Constituição Federal.
Por fim, acreditamos que a Unilab deve reafirmar sua posição exarada no Edital nº 29/2019, de 9 de julho de 2019, que tornou público o processo seletivo específico para candidatas(os) transgêneras(os) e intersexuais, mantendo vigente a referida norma jurídica, e para tanto colocamos à disposição toda a nossa equipe jurídica de especialistas na questão da diversidade sexual e de gênero para garantia da autonomia universitária no tema em questão, e informamos que já estamos avaliando possíveis medidas judiciais caso haja realmente o cancelamento do certame.
Toni Reis
Diretor Presidente
Aliança Nacional LGBTI+
Marcel Jeronymo Lima Oliveira
OAB/PB 15.285
Coordenador Nacional da Área Jurídica da Aliança Nacional LGBTI+