Menu fechado

NOTA DE POSICIONAMENTO DO CASO DE SUSPEITA DE FRAUDE EM COTA PARA TRANSEXUAIS NA UFSB

NOTA OFICIAL DA ALIANÇA NACIONAL LGBTI+

A Aliança Nacional LGBTI+, através de sua Área de Mulheres Trans, no uso de suas atribuições como organização de defesa dos direitos das pessoas LGBTI+ em todo território nacional, vem a público se posicionar sobre as questões relativas ao caso de suspeita de fraude em cota para transexuais na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/12/17/em-transicao-de-genero-estudante-de-medicina-tem-matricula-cancelada-na-ufsb-por-suspeita-de-fraude-de-cotas-para-transexuais.ghtml

Compreendemos que as cotas instituídas em cursos de graduação e pós-graduação para pessoas travestis e transexuais em universidades públicas são positivas e essenciais para a correção histórica de distorções criadas a partir de visões preconceituosas, machistas, e sexistas, que impedem pessoas trans de terem oportunidade de se desenvolver plenamente na sociedade como iguais, promovendo, na maioria dos casos, a negação a direitos básicos como educação, saúde e acesso ao mercado formal de trabalho e emprego.

Estas distorções são chagas e símbolos que precisam ser apagadas do Brasil. Ainda há um caminho muito grande a ser percorrido para que os direitos básicos desta população sejam garantidos. A população trans é vista como pária e é exterminada diariamente de maneira brutal, um extermínio que vai além de homicídios e transfeminicídios, mas também suicídios forçados por uma sociedade ensandecida.

Recentemente, porém, o incidente ocorrido na UFSB tem sido matéria de diversas indagações que requerem a nossa atenção e devida resposta. Neste caso específico, a pessoa acessou a universidade por meio de cota destinada à pessoa travesti ou transexual sob alegação de ser uma pessoa transgênero de gênero fluido, que transita muito bem pelos universos feminino e masculino, e que, por tanto, merecia preencher determinada vaga.

Ora! Acreditamos que o ou a estudante tenha o direito de acessar o ensino superior, mas não utilizando-se da premissa de ser uma pessoa travesti ou transexual e que a tal tentativa pode representar fraude ao sistema de cotas estabelecido em certame específico, bem como todo o propósito da política de cotas para pessoas travestis, transexuais ou transgêneras.

Ao contrário do que o senso comum possa crer, ser transgênero não tem apenas a ver com o íntimo desejo de se expressar ou ter uma identidade de gênero oposta ao sexo assinalado ao nascimento. Ser transgênero tem a ver com a transgressão social à norma vigente e binária de gênero, estabelecida por meio da performance social dissonante daquela prescrita pela normatividade.

Quando uma pessoa travesti resolve fazer modificações em seu corpo para afirmar seu gênero feminino, ela está desafiando a normativa de que menino tem determinados comportamentos, responsabilidades e papéis esperados pela sociedade. É esse descumprimento do contrato social que torna a pessoa travesti, transsexual, mulher trans, homem trans ou transmasculina em transgênero, não qualquer determinação ou classificação científica ou fenotípica. Neste sentido, o termo transgênero passa a ser um guarda-chuva para diversas identidades sociais e políticas, para diversos cidadãos que têm em comum a marca da desobediência às normas binárias de gênero.

A cisgeneridade como norma, impõe, historicamente maneiras específicas e papéis de gênero específicos a todos os seres humanos, enquanto a transgeneridade seria, neste sentido, a traição a regra. Daí surgem conceitos importantes como a cisnormatividade, que como categoria de análise nos permite compreender os mecanismos sociais de opressão e as relações sociais a partir das instituições e dos discursos vigentes, assim como o conceito de branquitude faz com a discussão da necessidade de uma luta antirracista.

Transgêneridade surge como conceito dentro do campo dos estudos de gênero, e como conceito abarca uma diversidade de grupos sociais. Mas transgeneridade também é um espectro, para fora do binarismo de gênero que compreende pessoas travestis, transexuais, homens e mulheres trans. No entanto, todas as demais identidades do espectro transgênero que são também chamadas de vivências gênero-divergentes ou gênero-não-conformes são cunhadas exatamente assim aqui no Brasil, e podem compreender pessoas não-binárias, pessoas a-gênero ou pessoas de gênero fluido, como parece ser o caso em questão.

Embora enquanto movimento social LGBTI+ nós pautamos pela inclusão de diversas identidades políticas que se identifiquem com o fato de seus comportamentos, condições, sentimentos e culturas serem dissidências sexuais e de gênero, e acolhemos todas essas populações e suas demandas como objetos de nossa luta, acreditamos que nem todas as pessoas gênero-diversas são pessoas trans, ou ainda que, nem todas as pessoas gênero não-conforme sejam percebidas socialmente, ou sofram socialmente todas as agruras que pessoas travestis e trans historicamente sofrem no Brasil.

Os corpos das pessoas transgêneras possuem marca, e, portanto, são vitimizados pelo pensamento machista e patriarcal na percepção social ser vista como passíveis de morte, assassinatos e que, todos os anos têm seus corpos mutilados, são os de travestis e transexuais, são os de mulheres trans e homens trans. São eles que precisam evadir da escola, eles que muitas vezes, estão à mercê da violência policial, da execução extrajudicial. É esta população específica, de travestis, transexuais, mulheres e homens trans e transmasculinos – e não um conceito meramente acadêmico como transgêneridade – que propulsiona a máquina do estado para a exclusão.

É na população trans que vamos encontrar altíssimos níveis de analfabetismo, exclusão do mercado formal de trabalho, 90% de sua população feminina realizando trabalho sexual como única fonte de renda possível. É nessa população que se verifica maior violência na execução dos crimes de ódio. São as travestis o maior motivo de chacota na literatura, no discurso social, na história brasileiras. São corpos específicos, não mera taxonomia social.

Antes de se tratar de dizer quem são ou não as pessoas trans dignas de cotas, queremos nos colocar contra os esforços de indivíduos que abusam dos esforços institucionais de avançar direitos sociais de uma população, utilizando-se do oportunismo, e afirmar que os direitos sociais a ações afirmativas devem ser reservados àqueles cujas identidades sociais e políticas têm sido historicamente afetados, devido a concepções culturais engendradas socialmente e que produzem resultados em corpos específicos e determinados.

Acreditamos, assim como vozes do movimento negro, que as universidades precisam estabelecer bancas de heteroidentificação, com a participação da sociedade civil para prevenir os oportunismos de pessoas que sempre pertenceram a camadas privilegiadas da população e que tentam, por meio da fraude ocupar lugares reservados para populações historicamente excluídas, assim como no caso da população negra, e assim como há tantos casos conhecidos de pessoas brancas que tentam se passar por negras.

Neste sentido, gostaríamos de corroborar com os esforços da UFSB em realizar todos os procedimentos adequados estabelecidos em edital, além de todos os processos para verificação da ocupação de vagas destinadas a cota e seus desdobramentos, sejam para quais forem as populações envolvidas, para que estejam de acordo com critérios bem estabelecidos e de forma a dar real oportunidade de concorrência para quem realmente esteja excluído ou possua chances desiguais. Consideramos o processo como uma prática saudável, necessária e importante para o avanço da inclusão e da igualdade de oportunidades.

17 de dezembro de 2020

Rafaelly Wiest
Diretora Administrativa da Aliança Nacional LGBTI+

Alessandra Ramos
Presidente do Instituto Transformar Shélida Ayana
Coordenadora Titular da Área de Mulheres Trans na Aliança Nacional LGBTI+

Layza Lima
1ª Coordenadora Adjunta da Área de Mulheres Trans da Aliança Nacional LGBTI+;
Assessora de Mobilização, Integração e Interação da Aliança Nacional LGBTI+ e Coordenadora Titular da Aliança Nacional LGBTI+ no ES

Lana Larrá
2ª Coordenadora Adjunta da Área de Mulheres Trans da Aliança Nacional LGBTI+

Camile Da Silva Nascimento
3ª Coordenadora Adjunta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *